Santa-Rita Pintor
Santa-Rita Pintor, Guilherme Augusto Cau da Costa de Santa Rita (1889-1918) foi uma figura mítica da primeira geração dos modernistas portugueses, com uma obra envolta em mistério. Nunca expôs em Portugal, mas esteve vários anos em Paris com Amadeo de Sousa-Cardoso, tendo sido o mais ativo impulsionador do breve futurismo português. Morreu prematuramente, antes mesmo de completar 29 anos de idade, vitimado por tuberculose pulmonar, deixando ordem para que todos os seus trabalhos fossem queimados, restando uma única pintura e um conjunto de reproduções rudimentares, a preto e branco, nas revistas “Orpheu” (1915) e “Portugal Futurista” (1917). Teve dois irmãos: Augusto de Santa Rita (1888–1956), escritor modernista, e Mário de Santa Rita (1890–1909), poeta. Formado na Academia de Belas-Artes, parte para Paris como bolseiro do Estado em abril de 1910, mas, sendo monárquico, perde a bolsa dois anos mais tarde, devido a um conflito com João Chagas, embaixador português. Em Paris, torna-se próximo de Mário de Sá-Carneiro (que se inspira nele numa personagem de “A confissão de Lúcio”, 1914). Contacta com círculos artísticos de vanguarda, nomeadamente com Marinetti, o que o leva a aderir ao futurismo. No ano de 1912, expôs, no Salon des Indépendents de Paris, o quadro O Ruído num Quarto sem Móveis, cujo título, por si só, “dava o mote futurista dos seus interesses”. Santa-Rita era, segundo Sá-Carneiro, “um tipo fantástico”, “ultramonárquico”, “intolerável”, “insuportavelmente vaidoso”. Com o início da Guerra (1914), regressa a Portugal. Em 1916 afirmaria: “Futurista declarado em Portugal há um, que sou eu“. Um dos seus objetivos era editar os manifestos de Marinetti, de quem se dizia mandatado para o efeito – desejo nunca realizado. Em 14 de junho de 1915 participa talvez num evento de que ele, Almada Negreiros, José Pacheko e Ruy Coelho seriam os promotores, um «grande congresso de artistas e escritores» – de que não existem notícias na imprensa e que poderá nunca ter ocorrido –, a nova geração levantava-se em protesto «contra a modorra a que os velhos a obrigam». Ainda nesse ano participa no segundo número da Revista Orpheu, onde são reproduzidos quatro trabalhos seus. Tenta ainda liderar os futuros números da publicação, sendo travado por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Começa então a preparar uma revista alternativa. Em 1917 publica o primeiro e único número de “Portugal Futurista”, revista apreendida pela polícia à porta da tipografia – por alegada obscenidade de alguns artigos. Almada Negreiros protagoniza a apresentação “tumultuosa” da revista no Teatro República (hoje S. Luís). Com uma assistência ruidosa mas pouco numerosa, composta por curiosos dos cafés «intelectuais» do Chiado e alguns estudantes, Santa-Rita participaria a partir de uma frisa, animando o espetáculo, onde foram lidos textos de Almada (“Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX”) e de Marinetti. Uma fotografia sua de grande formato abria a publicação e um texto de Bettencourt Rebelo sagrava-o como “o artista que o génio da época produziu” e o “grande iniciador do movimento futurista português”. A ilustrar o texto, quatro reproduções de obras suas, entre as quais um trabalho mais antigo, Orpheu nos Infernos.
Sem nunca ter exposto em Portugal, com uma obra praticamente desconhecida do público, Santa-Rita morre no ano seguinte vítima de tuberculose, deixando ordens expressas à família para que todos os trabalhos de sua autoria fossem destruídos. Desaparecido Sá-Carneiro, que se suicidou em Paris em 1916, a morte de Santa-Rita irá ditar o termo do futurismo português. São muito poucas as obras que sobreviveram à ordem de destruição cumprida pela família de Santa-Rita após a sua morte. Reproduzida em 1917 na revista “Portugal Futurista”, Orfeu nos Infernos é uma obra de grande violência expressiva, embora José-Augusto França a considere como um exercício de escolar de Belas Artes. “Cabeça”, por seu lado, é consensualmente considerada uma obra central do modernismo em Portugal. Datada no verso por mão desconhecida, o ano de execução permanece incerto, mas deverá localizar-se entre 1910 e 1912, precedendo as pinturas cubistas de Amadeo ou de qualquer outro português. Esta obra aproxima-se das máscaras africanas evocadas por Picasso nas Demoiselles d’Avignon, ou de outras obras do mesmo autor datadas de 1909 e 1910, mas a sua dinâmica, dominada por formas curvas e por um forte sentido de movimento, é próxima das explorações dos futuristas de Umberto Boccioni. Os quatro trabalhos reproduzidos na revista “Orpheu” são de algum modo devedores de Picasso, da fase seguinte. Mais do que uma aproximação às soluções formais dos futuristas, nestas obras Santa-Rita revela a influência das descobertas de Picasso e Braque. Próximo da solução cubista mas próximo dos dispositivos do futurismo será “Perspetiva Dinâmica de um Quarto ao Acordar”, 1912, reproduzido em 1917 no “Portugal Futurista”. O Chiado foi testemunha primeira da ação fulgurante deste artista que se mitificou.
Guilherme d’Oliveira Martins