Amadeo de Souza-Cardoso
Disse Almada Negreiros: “Amadeo de Souza-Cardoso, Santa-Rita Pintor e eu, diante da tábua quinhentista Ecce Homo do Museu de Arte Antiga, firmámos um pacto do grande frete da Poesia: enquanto a Poesia não é. Assim saímos do Museu fomos cortar os nossos cabelos e sobrancelhas à navalha de barba, e assim passeávamos pela capital o remotíssimo grito de silêncio. Amadeo e Santa-Rita não sobreviveram um ano ao nosso pacto”. Foi no Chiado que passearam, naturalmente. Amadeo representa o que Baudelaire definiu para a modernidade: «é o transitório, o contingente, a metade da arte, cuja outra metade é eterna e imutável». E o século XX marcou pela novidade, pela técnica, pelo exotismo e pelo diferente. Dir-se-ia que as duas metades definidas por Baudelaire se encontram neste artista que soube lidar com o tempo – ligando a herança e a necessária transformação pela arte. Numa célebre entrevista ao jornal «O Dia», Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918) proclamou solenemente: «Eu não sigo escola alguma. As escolas morreram, Nós, os novos, só procuramos a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstracionista? De tudo um pouco. Mas nada disso forma uma escola».
A insatisfação é a marca dominante ao longo do seu percurso criador. José-Augusto França fala da impaciência, da angústia e de uma criação expressiva e colérica, «misturando na sua definição uma grande liberdade plástica e uma grande necessidade de dar força e imagens, violentas ou irrisórias, a uma ideia do próprio mundo que o pintor pressentia para além de uma aldeia que o destino lhe dera».
Em 1908, no ano dramático em que Unamuno escreveu sobre Portugal, a presença invisível de Amadeo estava próxima de Pascoaes e de Manuel Laranjeira. Hoje, podemos ligar as referências – já que o jovem pintor projetou com pujança o que tanto interessava ao mestre de Salamanca. O artista interpreta o que é genuíno e diferente na terra que conhece. Isso faz parte integrante da sua existência como artista que recusa a mediocridade que vê em volta. Amadeo regressa a Paris e escreve à mãe: «Gostei muito de estar em Manhufe. Fazia um sol intenso. A montanha inundava-se de luz. E que grandiosidade aquelas montanhas! Fiz lá uma oito manchas e estava progredindo bastante, começava a interpretar melhor a natureza. Agora estou em Paris, não imagina a tristeza que me fez ontem esta atmosfera parda, este sol anémico. O que me valeu foi encontrar o Vianna e levámos o dia a falar do Portugal prodigioso, país supremo para artistas. É pena que não haja um forte meio de arte».
Sente-se a força original da sua obra. Como Almada disse: «o seu rincão natal são as próprias cores». Foram estas as que teve «para começar a sua mensagem de poeta». Das raízes da terra e da luz, do «Portugal prodigioso» parte-se para a procura das mudanças necessárias. Lembramo-nos da colaboração de Amadeo no número 3, que nunca veria a luz do dia, de «Orpheu». Amadeo foi um mediador, por insuscetível de ser encerrado num rótulo ou numa escola, podendo ligar fundamentos, raízes e modernidade. E se muitas vezes houve quem compreendesse mal o lugar de Amadeo na história da nossa Arte, tal deveu-se à independência, à originalidade e à insatisfação do artista. Está em causa a ligação entre Manhufe, Paris e o Chiado, entre a proximidade poética a Teixeira de Pascoaes e à Renascença Portuguesa e a ponte para a força inovadora de «Orpheu». Almada Negreiros reconhecerá, assim, nele um sinal marcante. Mas, para Helena de Freitas, Amadeo é dificilmente definível, «não tem um discurso regular, desloca-se com destreza entre vários registos na vida e na obra. Percebe-se na diversidade da pose (entre o provinciano e o cosmopolita), no estilo versátil da escrita, na letra instável, no desconcertante traçado das assinaturas»…
Guilherme d’Oliveira Martins