Almeida Garrett
No Chiado falar de Garrett? É uma tautologia, pois hoje a velha Rua Larga de Santa Catarina, a começar no antigo Convento do Espírito Santo da Pedreira – os Grandes Armazéns do Chiado – e a terminar no Largo das Duas Igrejas, é justamente a Rua de Garrett. Por ali andou o dandi, o homem de cultura, o político, o mestre – entre o seu Teatro Nacional e o Conservatório Nacional, duas obras a que está intimamente ligado. E por ali foi com Herculano um dos fundadores do Grémio Literário.
Almeida Garrett é uma referência maior da cultura portuguesa que supera em muito qualquer classificação de escola ou de grupo. Por isso, foi respeitado e referenciado por todos quantos, sob as mais diversas influências, até à modernidade, cuidaram de quem marcou indelevelmente o amadurecimento das nossas língua e cultura. «Não sou clássico nem romântico, de mim digo que não tenho seita nem partido em poesia (assim como em coisa nenhuma); e por isso me deixo ir por onde me levam as minhas ideias, boas ou más, e nem procuro converter as dos outros, nem inverter as minhas nas deles: isso é para literatos ou outra polpa, amigos de disputas e questões que eu aborreço». Estas são as suas palavras, significativas, em 1825 no prefácio à primeira edição de «Camões» e demonstram sobretudo a independência de espírito e a especial atenção de Garrett relativamente às mudanças fundamentais do seu tempo. A moderação é a marca da sua intervenção política, afirmando-se entre os setembristas moderados, como dirá no célebre discurso do Porto Pireu, exemplo da oratória parlamentar, em resposta a José Estêvão: «É verdade: todas essas galés de injúrias navegadas de toda a parte do mundo, vieram descarregar-se a um imaginário porto Pireu, onde, sonhando os agradáveis sonhos da loucura ambiciosa e da cobiça frenética, nos supuseram, a estes poucos homens do centro, que, por poucos, por moderados, por guardadores de todas as formas, deviam ter merecido mais alguma daquela civilidade e consideração com que a todos acatam, renunciando tantas vezes a despicar-se das ofensivas, até a defrontar-se dos agravos, com que a todo o instante são provocados» (8.2.1840).
O homem de cultura, encontramo-lo a pugnar pelo Conservatório Real de Lisboa. A determinação de Garrett é clara, em nome do ensino das Artes – Declamação, Música, Dança e Mímica. A figura tutelar de Gil Vicente é chamada em nome da «ideia de civilização». O presidente da instituição é D. Fernando II, em nome das conjugação dos princípios democrático e monárquico, tão cara ao dramaturgo – que se empenha a fundo nos mais ínfimos pormenores, para que o Conservatório tenha as condições para ser marcante. E nesse combate conta com o apoio de Passos Manuel, sopro da liberdade e da democracia, e com Rodrigo da Fonseca, o homem capaz de compreender o Portugal mais a fundo…
No tempo de Costa Cabral, Garrett passa para a oposição – uma vez que o executivo «absolutamente declarou por seus atos, que queria governar no interesse exclusivo de um partido». E dirá a seu amigo Silva Abreu: «desagrada-me o estado das cousas e a tendência dos homens. Sou pasteleiro pelo coração e pela cabeça: sentimento e reflexão me fazem desejar e crer que não seja nacional nem fixo todo o governo exclusivo e intolerante. (…) Portugal não é dos setembristas nem dos cartistas, é dos portugueses». Afinal, vê no novo poder cabralista pretextos para «vingançazinhas mesquinhas de bairro e bairristas».
Pela demarcação política, foi demitido pelo Decreto de 16 de julho de 1841, assinado por Joaquim António de Aguiar, da Inspeção-Geral dos Teatros, de Vice-Presidente do Conservatório e de Cronista-Mor do Reino… Daí o clima de desalento que sentimos nas «Viagens», onde descreve a ida ao encontro de Passos Manuel em Santarém. Em 1846, no final da guerra da Maria da Fonte, ainda julga poder participar numa solução moderada, que, no entanto, será destruída na «emboscada» de outubro, na qual a rainha D. Maria II ainda vai dar a mão a Costa Cabral. Nesse ínterim, Garrett e Rodrigo ainda tentam mobilizar Passos para uma solução – mas não têm sucesso. A guerra civil regressa, impiedosa e inexorável – na Patuleia. A propósito do Grémio Literário (referência essencial do Chiado), o escritor confessa-se a Rodrigo mais político que literato. Contudo, nas «Viagens», os barões são duramente julgados, na pessoa de Carlos. O certo é que o genial escritor ainda regressará à ribalta política na Regeneração, com a pasta dos Negócios Estrangeiros. Mas a política tem sempre as suas vicissitudes e a amizade entre Garrett e Rodrigo terminaria toldada num episódio triste de intrigas e calúnias, em 1852, em que o poeta se sentiu injustiçado. Mas Garrett será sempre Garrett e não mais os esqueceremos no Chiado e na rua que o honra, no centro da capital.
Guilherme d’Oliveira Martins