Padre António Vieira
O Padre António Vieira também está ligado ao Chiado. Foram célebres os Sermões de S. Roque. E os fiéis para o ouvirem, deitavam tapete várias horas antes da chegada do orador. “Deitar tapete” significava esperar sentado no chão e ouvir nessas mesmas condições, já que os templos não tinham bancos ou cadeiras… O tapete atenuava o frio do lajedo. O carisma do Padre Vieira ficou, assim, nas tradições do Chiado.
Depois de 1640, ao lado de D. João IV, o mais célebre dos Conselheiros do novo rei foi exatamente o Padre António Vieira (1608-1697), figura ímpar da cultura portuguesa. Com o Padre António Vieira, estamos perante a maturidade da língua portuguesa em prosa, cuja leitura nos dias de hoje continua a encher-nos de emoção. Foi um visionário, um diplomata, um pregador da Capela Real, um conselheiro avisado, um humanista, um lutador pelo respeito da dignidade de todos, à frente do seu tempo, e um artífice, como houve muito poucos, da palavra dita e escrita. Sente-se, em cada expressão, em cada ideia, a força mágica dos encadeamentos, das repetições, das sinonímias, das contradições, dos paradoxos, das metáforas, dos símbolos, dos conceitos, do ponto e do contraponto, da proximidade e da distância. Vieira não se resume, nem se limita ao jogo de palavras e de ideias, por detrás desse jogo aparente está uma corajosa defesa de ideias e de causas, que, pela sua determinação e persistência, lhe foram causando os maiores dissabores e os piores contratempos.
E é preciso ter uma força muito especial para poder manter-se atual quatro séculos depois do seu nascimento. E se digo atual, uso a palavra com o cuidado devido: não significa que possamos repetir agora o que foi dito por ele no século XVII, quer antes dizer que podemos hoje compreender, ressalvadas as distâncias de tempo e mentalidades, o que visava o padre, o orador ou o conselheiro. E percebemos bem que o que dizia e o que pensava estava muito à frente do que entendiam os seus contemporâneos. Vieira foi um homem que procurou sempre pautar-se pela antecipação e pelo critério do futuro, demandando respostas para um transe muito difícil então vivido pelos portugueses.
Como pregador precisava de seduzir e de mobilizar vontades, quando a sociedade estava dividida e perplexa. O império temporal vinha-se esboroando, num processo longo que vinha do último quartel do século XVI. As riquezas perdiam-se ou dissipavam-se, o “fumos da Índia” avolumavam-se, havia divisões profundas (bem evidentes na crise dinástica que Vieira sentiu diretamente, sobretudo depois do desaparecimento de D. João IV). Havia, por isso, que reconstruir o império em moldes totalmente diferentes, que não padecessem das enfermidades antigas. E um império sem pés de barro, teria de ser espiritual, para ser motivador e tentar combater os males da corrupção do poder e do dinheiro. E vinha à baila a antiga ideia judaica de “povo eleito” à exigência moderna de encontro e de reconhecimento das diferenças. Eis por que razão a espiritualidade de Vieira procura ser aberta aos outros e ao futuro.
E no entanto nota-se o risco, que mais tarde se revelará (na história das “reduções jesuíticas”, por exemplo), de um choque de projetos políticos, o do reino e o da companhia. Esse risco sente-o o próprio Padre Vieira, ora por incompreensão política, ora pelo sobe e desce dos poderes, ora por ameaça dos interesses e ora por falta de meios para agir. Delineou uma estratégia, segundo a qual seria necessário compatibilizar o humanismo universalista e uma nova ideia de império. E o Padre Vieira retoma então o que os franciscanos espirituais há muito defendiam (na linha do monge calabrês Joaquim de Flora, que falava das Idades do Pai, do Filho e do Espírito Santo).
Guilherme d’Oliveira Martins