Aquilino Ribeiro
Aquilino era um escritor do Chiado. Se entrarmos na Bertrand temos lá o seu retrato, para nos dizer que ele foi uma das presenças assíduas na Livraria multissecular, não apenas como leitor, mas como responsável e referência da Casa.
Nos anos cinquenta, quem se aventurasse pelo Chiado, daria de caras, por certo com o grande escritor. E que leituras saborosas ele nos deixou, desde o “Romance da Raposa”, matreiro e ladino, até à grandiloquente saga… E em «A Casa Grande de Romarigães» tudo se soma, num resultado positivo: o património material, as tradições e os costumes, bem como o trabalho aturado e moroso da língua-mátria. As pedras encontram-se com o linguajar. As plantas, os vinhedos, o milho nos espigueiros, as aves, as trutas, as lebres – tudo se funde numa descrição magnífica do que temos para ver. Romarigães é o símbolo da memória viva. E o certo é que a ruína depressa pôde tornar-se lugar de imaginação, acordando a história viva… Hilário Barrelas não esconde as fraquezas, mas deixa-se animar pelas memórias. Ler interminavelmente o romance, a saga, é um prazer extraordinário. «Fica em Romarigães, na bela ruína do Amparo. Tinha caído o telhado na linda capela, os caseiros queimaram as portas, a talha do altar e do coro, e deixaram desaparecer imagens e painéis. No solar uma das paredes da construção filipina esbarrigara e acabou por dar em terra. Pelos telhados entrava água como por cestos rotos e as tábuas do soalho, se lhes punham um pé em cima, rangiam e estalavam, escancarando-se em precipícios traiçoeiros para as lojas. Para cúmulo, o Estado tomara conta do salão principal para aula de primeiras letras, o salão onde D. Telmo de Montenegro, o verdadeiro, o espanhol, o quixotesco, dera festas de truz às duas fidalguias de Minho e Galiza. Não restavam alizar direito nem uma janela intacta. Os móveis que eram de estilo carregara-os um ferro velho para o Porto por tuta e meia. De gorra com um caseiro ladro e tramposo, os netos do Conselheiro haviam alienado águas que pertenciam às quintas e procederam a derrubadas consecutivas na mata, em cujas brenhas se caçara o javali, sempre que tinham necessidade de dinheiro para as suas pândegas, encalvecendo-a miseravelmente. De modo que o homem dos espaços abstratos, o sonhador, o Hilário Barrelas das “midnettes” da Rue Gay Lussac, só encontrou verdadeiramente incólume o olhar de Nossa Senhora do Amparo. Mas tanto bastou, ajudado duma mirada angustiosa do Cristo setecentista, que assistira na fumareda da casa dos caseiros a suas rixas e bodeganas, para se declarar rendido».
A melhor homenagem a Aquilino é lê-lo, sempre, e lembrá-lo. Português difícil? Talvez. Mas genuíno e saboroso. Aqui encontramos o melhor da defesa do património vivo e da identidade.
Guilherme d’Oliveira Martins