Figuras do Chiado

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Antero de Quental

Foi no Chiado, no antigo Largo da Abegoaria (hoje Rafael Bordalo Pinheiro), que Antero de Quental (1842-1891), no longínquo dia 27 de Maio de 1871, proferiu a célebre conferência que chegou até nós envolta em roupagens de celebridade, mas também de mito. E pode dizer-se que nessa reflexão o autor quis ser revolucionário; e marcou claramente as gerações intelectuais que se seguiram. E, se é verdade que o caso Dreyfus iniciou na Europa o envolvimento dos intelectuais nos debates políticos, temos de lembrar que em Portugal foi uma geração de jovens que iniciou em Coimbra a rutura na senda dos ventos que vinham da Europa. As Conferências Democráticas prenunciaram um tempo de intervenção social, que o século XX viria a seguir por caminhos múltiplos. E, assim, mais do que a preparação de uma revolução política, com repercussões apenas imediatas, o que Antero de Quental e os seus pretenderam foi um despertar nacional. E hoje sabemos que a influência das Conferências ultrapassou em muito as fronteiras limitadas de um mero movimento de contestação ou até o âmbito do grupo que as promoveu. Conservadores e progressistas, republicanos e socialistas sofreram a influência do impulso pedagógico e social que está condensado na magistral conferência. No fundo, há uma nova atitude, que não só completa as intervenções fundamentais da “Questão Coimbrã”, segundo um pensamento social renovador, mas que também define, política e espiritualmente, um apelo à capacidade criadora dos povos peninsulares. Para trilhar um novo sentido, haveria, no entanto, que fazer a crítica das condições propiciadoras da decadência, o que aconteceu num dos melhores textos da nossa literatura: “Erguemo-nos hoje a custo, espanhóis e portugueses, desse túmulo onde os nossos grandes erros nos tiveram sepultados: erguemo-nos, mas os restos da mortalha ainda nos embaraçam os passos, e pela palidez dos nossos rostos pode bem ver o mundo de que regiões lúgubres e mortais chegamos ressuscitados”. E deparamo-nos com os fenómenos capitais definidores desse decaimento: “três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do Catolicismo pelo Concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do Absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das Conquistas longínquas”…

Estava em causa uma nova ideia de cultura: «uma Cultura que punha em causa (no dizer de Eduardo Lourenço), radicalmente, a tradição cultural portuguesa na sua expressão tridentina, e em última análise católica. O fim trágico de Antero esconde-nos (…) a essência histórica da sua tragédia cultural que não reside no seu conteúdo mas na sua exceção. Em suma, no seu isolamento. Só para ele era válida – no sentido doloroso e exaltante – a célebre frase da carta de Wilhelm Storck de que a sua geração teria sido a primeira ‘a sair conscientemente dos caminhos da tradição’». Mas essa atitude de rompimento não poderia deixar de ser paradoxal. Afinal, como insiste o ensaísta, “nada substitui uma religião se não outra em que o sentido da perdida se regenera e se exalta”. A um tempo, há a proposta de uma transformação radical e a procura de um fulcro pragmático para as mudanças sociais que se exigiam no sentido da justiça. E o que Antero verbera é o afastamento e a distância dos povos peninsulares relativamente a uma Europa “pensante e industriosa”. O que estaria em causa teria a ver com a recusa do atraso e do seu fatalismo e de “um destino subalterno e humilhante”. Eis por que razão Antero de Quental e os seus pretenderam um sobressalto geral, sobretudo sabendo que a sociedade portuguesa vivia alheada dessa consciência. A partir de uma atitude atenta ao sagrado e ao religioso, demarcada nitidamente de todo o conformismo: “essa foi a revolução cultural anteriana, bem mais importante que a apologia de uma mera Revolução ideal e idealista que seria menos uma inversão de signos como será a de Nietzsche, ou mesmo de um ateísmo assumido, do que uma nova revolução suscetível de ser para o mundo moderno o que o Cristianismo fora para o mundo antigo”.

Compreende-se que E. Lourenço considere que a única guerra teológico-intelectual válida seja a que opõe Lutero e Erasmo. E, nesta polémica, Antero assume-se claramente do lado do autor do “Elogio da Loucura”, procurando ligar Fé e Razão, e não sacrificando uma à outra. E o pensador micaelense lamenta que a Reforma não tenha podido passar os Pirenéus, fazendo-se, com olhos do seu tempo, e na senda do pensamento revolucionário liberal, como o de Garrett e Herculano, fiel ao ânimo dos bravos do Mindelo, de que seu pai fizera parte.

Antero cultiva o drama, Eça usará a sátira e Oliveira Martins afinará a crítica histórica pela ironia e pela tragédia. Lourenço completa, porém, a força transformadora das “Causas” referindo-se a dois outros textos fundadores da modernidade no século XX: o “Ultimatum” de Fernando Pessoa e o “Manifesto Futurista” de José de Almada Negreiros – igualmente definidores de um caminho que tem origem do grito das Conferências Democráticas. Como Herculano compreendeu bem (ele que discordava do pendor igualitário da nova geração, mas que punha a liberdade em lugar central e daí fazia decorrer a construção da sociedade), haveria que reconhecer cultural, social, e politicamente o “lugar da liberdade não apenas de pensar, mas de humanamente respirar e existir”. Antero exprimiu-o com meridiana clareza.

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