Do primeiro fenacistoscópio mostrando as etapas sucessivas da pirueta de um bailarino, às decomposições cronofotográficas do célebre Pas de deux filmado por Norman McLaren; das primeiras captações de danças serpentinas pintadas à mão sobre a película, às mirabolantes adaptações de coreografias pós-modernas através de múltiplas exposições e outros efeitos caleidoscópicos concebidos por Ed Emshwiller; dos estudos de “coreografias para a câmara” de Maya Deren, às improvisações com a “câmara somática” de Marie Menken; dos transes de rabiscos tribais gravados por Len Lye sobre o suporte fílmico, às configurações aleatórias de formas luminosas em movimento geradas por IA… Uma “pulsão dançante” profundamente ancorada na conceção e na perceção do movimento das imagens acompanha a evolução das formas cinematográficas experimentais ao longo das décadas, pulsão dançante essa que, não se reduzindo às posturas corporais e aos passos de dança académicos, emana dos gestos criativos de diversos cineastas e se repercute nas experiências sensíveis que os próprios filmes propõem aos/às espectadores/as, impulsionando-os a dançar com o olhar perante as figuras que se metamorfoseiam ou se agitam sobre o ecrã de projeção.
Em três sessões temáticas – “Pioneiras da cine-dança”, “Black & light dances” e “Corpos e grafias / coreias gráficas” – e uma sessão de homenagem a Ed Emshwiller – cineasta experimental e pioneiro da arte vídeo que, nos anos 60-70, colaborou com os coreógrafos americanos Alwin Nikolais e Carolyn Carlson –, este ciclo põe em destaque e confronta várias cine-danças emblemáticas da história do género, com algumas das obras de “radicais livres” que desafiam e ampliam os limites da disciplina, ou ainda com criações mais recentes que revisitam este legado cine-coreográfico à luz das tecnologias do cinema digital. Roubada ao principal filme “raspado” (scratched) sobre a película do precursor da animação direta Len Lye – que por sua vez se inspirou no fenómeno químico do mesmo nome –, a expressão “radicais livres” que dá o título a este programa evoca a dimensão primitiva e pulsional, excessiva e até transgressiva, do movimento dançante antes da sua codificação através de figuras coreográficas académicas: ou seja, tratam-se de obras que procuram menos sublimar ou cristalizar a arte coreográfica, do que reatar com a experiência primordial da dança no seu estado de coreia (do grego khoreia) ainda sem grafia (graphe). Concebidos como uma extensão das experiências somáticas dos cineastas tidas como transmissíveis aos/às espectadores/as através de uma espécie de “empatia cinestésica”, os filmes escolhidos permitem assim dar a ver como a partilha de uma vocação ou de um impulso dançante podem elucidar as dimensões mais radicais dos movimentos das imagens, que o cinema experimental nos convida a experimentar através dos nossos próprios corpos e olhares.