António Alçada Baptista
António Alçada Baptista (1927-2008) era um homem do Chiado. Jovem advogado a caminho da Boa Hora, editor da Livraria Morais, diretor de “O Tempo e o Modo”, Presidente do Centro Nacional de Cultura, diretor do jornal “O Dia”. O António era um incansável contador de histórias. Podíamos estar com ele horas a fio, serões seguidos, mas sempre havia motivo para bom convívio. A ele voltaremos mais vezes… Esta é dele. Um amigo, diplomata brasileiro, foi colocado na Embaixada do Brasil na Holanda. Chegou à noite e, logo na manhã seguinte, telefonou para a Embaixada para combinar com o Embaixador a sua apresentação. Atendeu o porteiro, um português emigrado, que assegurava a guarda daquela casa. O diplomata perguntou: – O Senhor Embaixador está? – O Senhor Embaixador não está. E como ele sabia como se compunha o quadro da Embaixada, foi perguntando, um por um, pelos seus titulares. Não estava nenhum. Admirado, perguntou: – Então, de manhã não trabalham? Resposta do porteiro zeloso: – Não. De manhã não vêm. À tarde é que não trabalham!…
Esta passou-se com o António. O problema da má consciência é que funciona muitas vezes como motivo de cegueira e de falta de um mínimo de racionalidade. Uma vez na UNESCO, onde António Alçada estava a convite do saudoso Eduardo Portella, deparou-se com um insuportável suíço, num discurso inflamado, a condenar severamente os espanhóis por terem descoberto a América. Felizmente, estava presente um egípcio que pôs os pontos nos ii: «Quando se fala da história dos nossos povos, parece que depois da chegada dos europeus é que tudo ficou muito mal. Ora, não é possível esquecer que, antes da chegada dos europeus, os nossos povos tinham expressões de escravatura e de exploração, tanto ou mais graves do que aquelas que os europeus trouxeram. Mas há uma coisa que se esquece (referiu o egípcio, com particular ênfase): é que, se os nossos povos viveram um dia a liberdade, isso é devido aos valores da democracia e dos direitos humanos, que foram trabalhados e divulgados pela Europa, que ela levou para lá e constituem hoje a nossa única esperança…».
O António contou-me outro dia como se ilustrava o analfabetismo da tecnocracia. Millor Fernandes dizia que «a economia compreende toda a atividade do mundo. Mas nenhuma atividade do mundo compreende a economia». A este propósito recordou o célebre caso da não criação de porcos. Abreviando razões, trata-se do pedido de um subsídio por cabeça para a não criação de porcos – e do requerimento para o efeito remetido a um Ministro. Basta ler a parte final para entender tudo. «Excelência. Estes porcos que não criaremos teriam comido 10 mil sacas de trigo. Ora, assegurando-nos que o governo indemnizará igualmente os agricultores que não cultivem o trigo. Nesta ordem de ideias, poderemos esperar que nos deem qualquer coisa pelas sacas de trigo que não serão cultivadas para os porcos que não criaremos. Ficar-vos-emos extraordinariamente reconhecidos se nos responder o mais rapidamente possível, porquanto julgamos que esta época do ano será a melhor para a não criação de porcos e, por isso, gostaríamos de começar quanto antes. Queira Vossa Excelência, Senhor Ministro, receber os protestos da maior consideração. P.S. – Excelência. Não obstante o exposto poderemos engordar 10 ou 12 porcos para nós, sem que isso venha a perturbar a nossa não-criação de porcos? Queremos assegurar que esses animais não entrarão no mercado e não significam mais do que a maneira de termos um pouco de toucinho e presunto para o inverno».
Outra aconteceu com o então Presidente do Grémio Nacional dos Editores e Livreiros, nos anos sessenta do século passado, Luís Borges de Castro e foi presenciada também pelo António Alçada. Havia uma reunião de rotina da direção do Grémio e nela irrompeu a PIDE, para prender o Augusto Sá da Costa. Acontece que os PIDES se tinham esquecido de levar o papel azul regulamentar para escreverem o auto de detenção. Por isso, um deles mandou um subordinado de elétrico, do Largo do Andaluz até à Rua António Maria Cardoso para trazer o tal papel… Durante cerca de 1 hora manteve-se uma atmosfera de cortar à faca, com uma ou outra interrupção – a pedir testemunhas e com o António a dizer que não contassem com ele para participar na prisão do Dr. Sá da Costa… Borges de Castro tentava quebrar aquele gelo, a desdramatizar a situação… Para desanuviar, volta-se para o agente da PIDE e pergunta, palacianamente, como se aquilo fosse um modo de vida como outro qualquer: – Então, têm prendido muita gente?…
Guilherme d’Oliveira Martins