Poucos como Brian Leeds têm sido capazes de deconstruir a alma e a morfologia da electrónica tal como a (re)conhecemos. Numa populosa e sempre emergente fauna de produtores dispostos a fazer avançar a música contemporânea noutros quadrantes, o norte-americano já alcançou uma admiração profunda por quem segue essa senda. Ao longo de uma década demonstrou caminhos oblíquos possíveis para entender, escutar e desenvolver a música de dança – em sentido propositadamente vago. Colonial Patterns foi a primeira instalação enquanto Huerco S. Um labirinto sonoro em que os ecos do techno coabitam numa colagem sonora de estática, reverb e memórias distantes. A bravura de uma estreia com este calibre dava desde logo a noção de que Leeds sabia ao que ia.
Três anos depois, For Those Of You Have Never (And Also Those Who Have) caiu-nos nas mãos como vindo de outro mundo. Um genuíno opus ainda a carecer de mapeamento. Praticamente beatless, embora pulsante como uma entidade com vida própria, arranha a superfície da música ambiental até sentir a rugosidade omnipresente nos seus discos. Pendant, Loidis e Royal Crown of Sweden são outros heterónimos que paralelamente Leeds assina uma extensa e impressionante obra ainda em escrita.
A terceira e nova vida de Huerco S. volta a levar-nos para terra incógnita. Plonk é um exoplaneta habitado por percussões metálicas e sintetizadores derretidos num fluxo inesgotável de possibilidades. O seu olhar abstracto continua a descobrir o menos óbvio como motor para as mutações rítmicas e melódicas que se acomodam num estado de pura arquitectura sónica.
O regresso deste patrão à ZDB é um momento alto. Pertinente pela apresentação de um dos discos do ano e essencial pela oportunidade de apanhar um dos exemplos mais brilhantes da música que urge ser escutada neste instante. NA
O novo disco de George Silver (aka André Neves) é um exercício dialético em torno do impulso e da forma; uma tentativa de canalizar o fluxo que precede a linguagem e de parar, ouvir, e voltar atrás sob o compromisso de não o comprometer. Uma conversa de si para sobre criar com a consciência de que já tudo parece ter sido criado, sem que se perca o espanto da revelação.
A dezena de temas do disco (composto e gravado ao longo de 2021 e ao abrigo da Bolsa de Criação da OUT.RA – Associação Cultural) atravessa territórios de contemplação beatífica transcultural (como em “Jardim”, meditação de encontro entre Brasil, África Ocidental e o Sudoeste Asiático), de electrónica chill para um sunset inquieto (“Insultório” ou “Pessoas são ilhas”) ou de synthpunk (em “Bom petisco” imaginamos, como se ouvida do outro lado do rio, uma colaboração entre os Suicide e os Scúru Fitchádu), para acabar placidamente numa esplanada parisiense não-necessariamente deste século (“Última rodada”).
Entre motivos transversais que remetem em permanência para a música de um fourth world que são todas as civilizações e nenhuma em particular, revela-se o ser-no-mundo de Silver – em todas as partes e em todas as épocas onde se imagine a sua música, no interior do fluxo que lhe precede a linguagem, sabe-se de tudo mas sabe-se nada.
– Rui Pedro Dâmaso